Após apreciação do Estudo de Impacte Ambiental do Parque Eólico de Chão Falcão II, cabe-nos referir as seguintes lacunas relativas a aspectos geomorfológicos e espeleológicos:
Considerações de pormenor
2 - Não é ressaltada convenientemente, em termos de valorização dos impactes, a importância das cornijas calcárias, escarpas de falha, vales escarpados e campos de lapiás, já que estes elementos do património geomorfológico são profusamente devassados;
3 - Não é estabelecida uma faixa de protecção adequada aos elementos do património geológico e geomorfológico identificados;
4 - A delimitação das formas cársicas é minimalista: apenas se considera o fundo preenchido com terra rossa das dolinas ou o fundo dos vales e não o contorno de toda a depressão como seria exigido; feita assim, esta delimitação mais não é que uma repetição da RAN ou da rede hidrográfica;
5 - É apenas apresentada informação fragmentada resultando que cabeços ou vales todos constituídos por vertentes lapiasadas e acidentadas por cornijas (como são os casos mais flagrantes do cabeços da Murada e do Vale dos Ventos) não sejam considerados como um todo mas sim como retalhos de lapiás dispersos pelas vertentes. Aliás, a interpenetração das formas é de tal maneira harmoniosa que depressões cársicas e cabeços que as circundam são um todo indissociável cuja expressão geomorfológica e paisagística os autores do estudo não souberam ler e dar o devido valor. A carta de lapiás e outras formas deveria por isso ser complementada com carta das unidades geomorfológicas de grandeza superior (contorno das grandes depressões cársicas; contorno dos vales suspensos; contorno da escarpa de falha; testemunhos das superfícies de aplanação). A fazer-se esta cartografia, resultaria certamente claro o imenso impacte causado pelo empreendimento nos vários aspectos geomorfológicos, a várias escalas;
6 - A caracterização das grutas referenciadas é insuficiente nem são propostas medidas de protecção para aquelas que possam ser afectadas pelos trabalhos;
7 - Não se propõem medidas relativamente às grutas que, com grande probabilidade, serão encontradas durante os trabalhos que envolvam escavações. Consequentemente não se contempla o acompanhamento dos trabalhos por geólogos com experiência no estudo das regiões cársicas, com o objectivo de detectar em devido tempo o aparecimento de grutas e outros fenómenos consideráveis património geológico, prevenir a sua destruição, promover o seu imediato estudo e propor medidas de protecção e/ou minimização de impactes;
8 – O estudo é omisso quanto à importância das grutas identificadas como habitats para as espécies de morcegos cavernícolas com diferentes estatutos de conservação;
9 – Permita-se-nos ainda, metendo foice em seara alheia, algumas notas irónicas para dizer que são, no mínimo, controversas as avaliações aventadas no capítulo “4.12.3.3 - Intrusão visual” do Relatório, que resultam num menosprezo claro da região e branqueamento do impacte dos aerogeradores. Diz-se nas págs. 119/207: “A unidade de paisagem em estudo apresenta diversas intrusões visuais decorrentes da presença de uma rede de caminhos de terra, da presença dos aerogeradores da primeira fase do parque eólico. No entanto, estas intrusões visuais são insignificantes quando comparadas com a presença de extracções de inertes” e compara-se uma foto de aerogeradores na linha do horizonte ao canto da fotografia com outra de frente de pedreira ocupando toda a largura do segundo plano. Bem se sabe quão impactantes visualmente são as pedreiras mas isso não pode ser argumento para ignorar os impactes dos aerogeradores a cuja presença não se pode escapar e estão em todo lado a vários quilómetros de distância. Não é por isso legítimo, a nosso ver, a conclusão tirada, ao arrepio, aliás, das várias observações no decorrer do capítulo.
Esta adaptada síntese da análise visual termina com uma asserção lapidar: “No entanto, a reduzida frequência de observadores, o baixo número de observadores e o afastamento dos observadores, bem como a presença frequente de nevoeiros, tornam a área de intervenção menos crítica em termos de impacte visual”. Isto é, se não houver observadores (apesar do eixo turístico Batalha-Fátima, da proximidade das Grutas da Moeda, da proximidade do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros; da zona de escalada natural no Vale da Quebrada, dos circuitos pedestres em torno das nascentes do Lis e dos sítios designados Parque de Lazer da Lapa e Miradouro Jurásico) não há impactes! Dito de outro modo, e bem à portuguesa, se estiver alguém a ver protejo a natureza, caso contrário não há problema. Quanto ao nevoeiro, os promotores do projecto, e nós todos, temos que lhe ficar agradecidos, pois durante 52 dias por ano, sobretudo durante a manhã (pág. 49/207 do Relatório), não há impactes visuais, bastando nesses dias ter apenas atenção aos impactos, propriamente ditos, com os postes. Cuidado aves de rapina, aliás reduzidas a alguns casais, apesar das escarpas e alcantilados, talvez por não saberem que região se chama precisamente (porquê?) Chão Falcão!
Conclusões
Por graves que sejam, e muitas são, as críticas apontadas atrás, de carácter técnico ou formal, são meras questões de pormenor quando comparadas com o principal impacte em causa, que é a invasão de uma unidade geomorfológica com características únicas por uma indústria tão impactante em termos de paisagem.
Na realidade, o Planalto de S. Mamede tem características geomorfológicas distintivas das restantes áreas do Maciço Calcário Estremenho. É o domínio das grandes depressões cársicas fechadas, coalescentes, lobadas ou em estrela que, no bordo poente do planalto, se estruturam em vales suspensos pelo ressalto da Falha do Reguengo. É também o domínio dos extensos níveis de aplanação, restituídos pelas iso-altitudes dos cimos dos cabeços (o “nível das Pias”, próximo dos 500 metros) ou representados por superfícies mais regulares que se engolfam nos relevos que suportam os níveis mais elevados (“plataforma de Fátima”).
Não só a forma mas também aquele padrão de distribuição das depressões cársicas nesta área do Planalto de S. Mamede são assimiláveis ao que ocorre em regiões tropicais húmidas e podem por isso ser tidos como um testemunho (raro na Europa) de morfologia cársica herdada de um paleoclima deste tipo, provavelmente acentuada pela longa evolução criptocársica sob a cobertura detrítica do Cretácico.
É nesta área do Planalto de S. Mamede que o balanço entre o máximo de erosão da cobertura detrítica e o mínimo de erosão dos calcários subjacentes foi o ideal para revelar este tipo de morfologia.
Devido ao reconhecimento destas características únicas, grande parte do Planalto de S. Mamede foi incluído na área de possível alargamento do PNSAC quando o município da Batalha, em movimento partilhado pela direcção do PNSAC (Arqª Maria João Botelho) e ICN (Drª Julieta Macedo), equacionou a inclusão prioritária das serras da Barrozinha e da Andorinha.
Historiando os erros estratégicos do ponto de vista da conservação desta área, reconhece-se, primeiro, o facto de ela não ter sido incluída no PNSAC aquando da constituição desta área protegida, segundo, não ter sido levado avante o alargamento do PNSAC, terceiro, ter-se deixado crescer desmesuradamente as pedreiras do Vale de Ourém (Alqueidão da Serra) e do Vale da Quebrada (Reguengo do Fetal), ao mesmo tempo que eram licenciadas novas pedreiras na Serra da Andorinha e em Barreira, esta já com dimensões impressionantes, e, quarto, o licenciamento do Parque Eólico de Chão Falcão I.
A actual proposta de alargamento do parque eólico para norte (constituindo o proposto Parque Eólico de Chão Falcão II), a ser aprovada, destruiria o que resta de área preservada nesta subunidade geomorfológica. De facto, a área em estudo para implantação do novo parque eólico, estende-se ao longo da linha de cabeços que coroam a escarpa de Falha do Reguengo, entre Alqueidão da Serra e Torre (a norte de Reguengo do Fetal). Nesta área podem ser identificados dois sectores: o sector a sul do Vale da Quebrada (incluindo este vale), em que as características geomorfológicas ressaltadas atrás são de primordial importância; e o sector a norte do Vale da Quebrada, onde essas características se atenuam.
Como se constata, uma vez que o Parque Eólico de Chão Falcão I já invadiu e degradou a área mais nobre a sul, resta a região que circunda o cabeço da Murada, desde Chão Falcão e Picareiros até à Serra da Andorinha. Ora, nesta região estão previstos 7 aerogeradores (AG1, 2, 3, 4, 7, 8 e 10), todos situados em área ainda bem conservada, à excepção dos mais a norte (AG1 e 3), situados perto de pedreiras!
Esta é, definitivamente, do ponto de vista da conservação da natureza, a área onde é menos concebível a instalação do parque eólico, se se pretende emendar a mão dos erros cometidos e preservar, um pouco que seja, desta morfologia de eleição.
Tendo em atenção o exposto atrás, a Comissão de Ambiente da Sociedade Portuguesa de Espeleologia considera um erro grosseiro e irresponsável o licenciamento deste parque, nomeadamente no sector a sul do Vale da Quebrada.
A Secção de Ambiente da Sociedade Portuguesa de Espeleologia