1. Introdução
1.1. A componente Geologia, Geomorfologia, Hidrogeologia parece não ter sido elaborada por técnicos especializados nestas áreas. Esta situação, a verificar-se – e não é possível aferir através da consulta dos elementos da equipa do EIA constantes no RT pois aí apenas é indicado se são Dr. ou Eng., sem se referir a sua especialização – é recorrente nos EIA e nomeadamente nos avaliados pela SPE, contribuindo para a dificuldade em fazer uma crítica construtiva, tal é por vezes a ignorância patenteada e o desfasamento entre o que é inserido no EIA e o que seria esperado.
Esta componente tem sido por isso sistematicamente subavaliada e, mesmo após os aditamentos avisadamente solicitados pelas Comissões de Avaliação, é indisfarçável a negligência com que esta vertente é tratada. A pobreza dos elementos aduzidos nesta componente contrasta chocantemente com a profusão de mapas de avaliação da paisagem, de testes de impacte sonoro, de campanhas monitorização de espécies vegetais e animais, de estudos de socioeconomia, património edificado, etc. Em últimos EIA avaliados verifica-se que a ausência de especialistas para tratar das cavidades cársicas é por vezes colmatada pela apreciação “espeleo-arqueológica” em que, presumivelmente, as observações de alguém da área da arqueologia visitando as grutas faria o pleno arqueologia e geologia, fazendo assim passar, sub-repticiamente, a dispensa da contribuição de geólogos com formação em regiões cársicas.
Não sabemos se haverá na APA ou nas comissões de avaliação constituídas, técnicos com a formação necessária para responder à exigência de avaliar um tema tão especializado como o património geológico das regiões cársicas. A SPE tem dado na medida do possível a sua contribuição na fase de consulta pública mas nem sempre o consegue fazer atempadamente e na maior parte dos casos não tem os meios necessários, nomeadamente financeiros, para efectuar os trabalhos de campo e de gabinete que são da efectiva responsabilidade da empresa de estudos de impacte ambiental. Enviou em tempos a SPE um ofício à APA numa tentativa de contornar esta situação mas não obteve, passados já 2 anos, qualquer resposta.
O estudo agora em apreciação está muito próximo de um novo exemplo do que se disse atrás. As lacunas são disfarçadas com inadequadas referências bibliográficas, com constatações genéricas e com mal aprendidas definições de manual. Deste modo, pode dizer-se, em síntese de inglória perda de tempo em observações e emendas sem fim, que a avaliação dos impactes sobre as águas subterrâneas e o património geológico, incluído aqui o geomorfológico e espeleológico, não é fundamentada num trabalho satisfatório que tenha cumprido os requisitos mínimos exigíveis e portanto não obtém nenhuma conclusão útil.
1.2. No Relatório Técnico é feito o enquadramento geológico e geomorfológico (com as insuficiências referidas adiante) mas a caracterização da área em estudo é quase inexistente e no Aditamento mantém-se a incapacidade de caracterizar a área em estudo.
1.3. O Aditamento deveria responder à solicitação da comissão de avaliação de “Apresentar a caracterização das estruturas cársicas de superfície e subterrâneas identificadas no EIA, nomeadamente, na que respeita às suas dimensões e interesse como potencial valor geológico.”
1.4. A consulta a entidades e ao histórico dos municípios também parece ter sido feita sem o necessário empenho e assim se explicará a não referência à área de aptidão turística da Serra da Barrozinha, da serra da Andorinha, e à ausência de consulta à Sociedade Portuguesa de Espeleologia, conforme sugerido pela Câmara da Batalha.
2. Deficiente caracterização geomorfológica
2.1. Enquadramento geomorfológico
O enquadramento geomorfológico é feito exclusivamente por alusão às unidades próximas situadas a sul, por vezes já sem ligação à área em estudo, misturando unidades tectónicas com unidades morfológicas, e.g. “a norte da estrutura anticlinal correspondente à Serra de Alqueidão”, “a norte do conjunto montanhoso das serras de Aire e Candeeiros” (Aditamento, pág. 4). Nada é dito sobre as regiões enquadrantes situadas a norte e a oeste, importantes para a percepção da terminação setentrional do Planalto de S. Mamede.
2.2. Suporte litostratigráfico
A importância do suporte litostratigráfico na compreensão das formas ocorrentes e na sua diferenciação das existentes a sul é ignorada ou referida sem conexão à geomorfologia. Também é esquecida qualquer referência às variações litológicas das rochas carbonatadas, aumento das coberturas detríticas em direcção a norte e importância destes aspectos na variação das características geomorfológicas regionais.
2.3. Características geomorfológicas genéricas
A caracterização geomorfológica genérica, prévia a uma descrição e caracterização dos fenómenos cársicos, incluindo os aspectos relacionados com a litologia, a tectónica, as coberturas detríticas, a erosão fluvial, a erosão diferencial, a marca paleoclimática, são completamente ignorados. Tão pouco, após o enquadramento geomorfológico, se passou à concretização da caracterização genérica do segmento da subunidade geomorfológica na qual se insere a área em estudo, como seria de esperar.
2.4. Fenómenos cársicos superficiais
Através da leitura do RT e Aditamento não é possível imaginar qual é o tipo de morfologia cársica superficial ocorrente na região. De novo se fala do que existe fora da área em estudo, e.g. “No planalto de S. Mamede, fora da área de estudo, sobressaem as formas cársicas” (Aditamento, pág. 4), sem caracterizar a área em estudo identificando “apenas o afloramento de lajes calcárias” em dois locais.
2.5. Fenómenos cársicos subterrâneos
No Quadro 3 do Aditamento deveria ter sido feita a recapitulação dos dados do anterior reconhecimento de campo e do Anexo 2.1. No entanto nota-se que na maior parte dos casos as observações são apenas justapostas, resultando uma amálgama de descrições e dados por vezes pouco explícitos e até contraditórios. Veja-se por exemplo que, para a cavidade CV3, na Descrição se diz que o desenvolvimento não passa do “par de metros” mas nas Observações se escreve que “foi possível avançar cerca de dez metros” e que, para a CV4, na Descrição se diz “algar aberto por dolina de abatimento, com cerca de 6 m por 6 m” e nas Observações se escreve “é uma cavidade pouco profunda, menos de 2m de profundidade, de secção aproximadamente circular e 4m de diâmetro”.
A falta de clareza deste quadro é acentuada pela alusão a tipologias pouco vulgarizadas e de duvidosa aplicabilidade ao conjunto de fenómenos em causa (“vadose shaft”, Baron 2003), repescadas do Anexo 2.1.
Ficou por fazer uma caracterização de síntese do endocarso que ultrapassasse a mera indicação de elementos soltos. Por outro lado, a pouca consideração sobre o papel das cavidades cársicas na evolução geomorfológica regional fica patente no simples facto de, nem no Anexo 2.1 nem no Quadro 3, serem referidos os dados da altitude a que as grutas se encontram.
A apreciação do papel das cavidades na evolução espeleogenética regional limita-se a algumas linhas de generalidades óbvias e quase infantis e nova alusão a Baron (?!): “Estas grutas desempenham um papel na infiltração de água, proveniente da chuva, em profundidade. Recorde-se que todas se encontram no (ou perto do) topo de uma elevação e que estão, como tal, numa zona de recarga de aquíferos. A água que nelas se infiltra, de acordo com o modelo de Baron, deverá continuar o seu percurso em profundidade através de fraturas, intransponíveis para o ser humano, até atingir coletores profundos” (Aditamento, pág. 15).
2.6. Anexo 2.1
O Anexo 2.1 cumpre os objectivos de identificar a distribuição espacial das cavidades, importante para a determinação de eventuais impactes directos, e os esboços simplificados que se apresenta são suficientes. Todavia, é necessário chamar a atenção para alguns erros relacionados com a descrição e com a interpretação.
Na ficha da cavidade CV3 há uma contradição entre a direcção referida para a fractura (N50W, i.e., NW-SE) e o proposto provável desenvolvimento da gruta ao longo dessa mesma fractura que se diz depois ser NE-SW. Também, de acordo com o desenho apresentado e respectiva escala gráfica, a profundidade seria 6 m e o desenvolvimento total 10 m, em vez dos 5 m e 8 m referidos.
Na ficha da cavidade CV4 esta é classificada como algar embora a avaliação das características indicadas (“menos de 2 metros de profundidade e 4 metros de diâmetro) devessem levar a incluir este fenómeno cársico no tipo dolina, já que é mais larga que profunda, eventualmente dolina de abatimento. Aliás essa descrição não está de acordo com as dimensões observadas no desenho apresentado, no qual a profundidade é 3 m e o diâmetro 8 m, a crer na escala gráfica. Também não se compreende a constatação de que “não foi possível observar a base da cavidade devido ao caos de blocos” e as considerações subsequentes daí resultantes, já que, naturalmente, este caos de blocos constitui a base da cavidade.
Na ficha da cavidade CV6 esta é incluída na tipologia “gruta”. O termo gruta é utilizado em sentido genérico, englobando todas as cavidades subterrâneas naturais e portanto não deve ser utilizado em matrizes tipológicas do endocarso. Também não é descrita a relação entre esta gruta e a dolina referida.
3. Deficiente caracterização hidrogeológica
3.1. Constata a generalidade (aliás, não demonstrada) que o “o Planalto de S. Mamede é drenado essencialmente pelas nascentes dos rios Lis e Almonda” (pág. 73 do RT).
3.2. Nada é dito com substância relativamente à circulação das águas subterrâneas, na região concretamente em estudo, em que se possa fundamentar avaliação dos impactes. A referência às nascentes de Fontes é meramente passageira e outras são ignoradas, como as de Reixida.
3.3. Os textos chegam mesmo a indiciar confusão entre circulação superficial e subterrânea: “a metade norte do PE… escoa para NW…(e) A metade sul drena para SW…” sem relacionar com a circulação subterrânea. De forma solta, acrescenta no parágrafo seguinte que “As nascentes do Lis… situam-se… na localidade de Fontes, a cerca de 1 km de distância”. (pág. 73 do RT).
4. Conclusão
Independentemente das insuficiências do EIA, a Sociedade Portuguesa de Espeleologia considera que não deve ser aprovada a construção deste parque eólico pois constituiria, na sequência dos impactes cumulativos já causados pelos parques eólicos de Chão Falcão I, II e III, o golpe final da descaracterização da fachada ocidental do Planalto de São Mamede, área identitária do Maciço Calcário Estremenho.
Sociedade Portuguesa de Espeleologia
Secção de Ambiente
Novembro de 2012